Gritos tão altos que não fazem barulho nenhu
Ilustração por Ana Machado (a mesma que vos fala)
Tem uma coisa que me irrita e me agrada ao mesmo tempo: a sutileza. Quando Renato é tão sutil ao dizer "não" para as pessoas, a ponto delas nem entenderem que era um "não" e colocar a gente em encrencas: me irrita. Mas me agrada quando vejo que existe tanta beleza na sutileza. Sabe? Vejamos Emilia, a cã: Emilia tem dias que o demônio toma seu corpo, e a gente chega até a cogitar que ela odeia a gente, porque é a única explicação para tanto caos que ela gera em um dia a troco de nada, é um tal de jogar a escovinha dela embaixo do sofá 47 vezes seguidas, começar a latir pra gente ter que levantar e ir lá resgatar a bendita escova que me faz questionar o sentido da vida na Terra. Mas aí, perto das 22h quando eu ponho ela na cama pra deitar com a gente, depois que eu termino de escrever no meu diário e desligo também o Kindle, quando eu me deito for real, sem falha, ela vai lá e usa meus pés de travesseiro. Isso me pega toda vez. Esse jeitinho de dizer "te amo" sem dizer "te amo". Você repara nesses pequenos gestos? É quando Renato diz que tinha pensado em fazer ovo no café da manhã dele mas viu que eram os últimos dois e sabia que todo o resto que tinha na geladeira eu não comia, então ele os deixou pra mim. (Eu rio escrevendo isso, mas é que eu acho tão bonito, mesmo). É um dia que eu falei pro meu pai que eu gostei de um miojo que eu comi na casa dele e quando veio na minha, trouxe um estoque que me durou meses. É quando lembram de pequenos detalhes de algo que você disse 3 conversas atrás. Tudo isso é de uma sutileza tão bonita, né? São gritos tão altos mas que não fazem barulho nenhum.
A Europa não é lá tão conhecida pelo espírito do coletivo como talvez a Ásia seja, e o pessoal não é tão afetuoso nas palavras também. Tipo assim, pra elogiar as vezes preferem dizer "não é feio" ao invés de te presentear com um "é bonito". Essa é a sutileza reversa eu diria, hahaha. Mas não é que eles deixam escapar a doçura deles nos gestos cotidianos? É quando a vendedora do petshop se dá ao trabalho de aprender meu sobrenome português não italiano para quando eu estiver no caixa ela já me atender mais rápido. Eu me emocionei esse dia, porque pra mim foi real um gesto de carinho uma pessoa que, por muitas vezes, eu interagi sem nem saber me comunicar ainda direito no idioma dela, ir lá e aprender meu nome, me chamem de dramática, mas achei lindo, me disse tanta coisa. Só pra não deixar de resgatar minhas raízes corporativas (bocejos), existe um termo famosinho que é o "walk the talk", basicamente "faça o que você fala". No português (e em tantos outros idiomas) a gente tem tantas palavras pra falar pra ser educado, é o perguntar "tudo bem?" pra literalmente qualquer pessoa que você vai interagir mesmo sabendo que, ou ela não vai nem responder se tá ou não tá bem, ou vai falar que está mesmo que não esteja, uma mera cordialidade. Tem os que a gente erra também, tipo falar "beijo, tchau" pra pessoa do telemarketing, ou responder "para você também" sempre na hora que nem sentido tem: alguém do restaurante te manda um "boa refeição" "pra você também", ou o uber te deixa em casa e diz "bom descanso" "pra você também". A vergonha que sobe imediatamente ali do meio do peito diretamente para as minhas bochechas, aiai. Tantas palavras pra cumprir protocolo quando atitudes podem dizer muito mais.
Os gestos sutis tem me marcado muito mais do que as cordialidades banais do dia-a-dia.
Até quinta que vem!