Dolce far niente e ansiedade de fazer tudo

Dolce far niente. Pego meu kindle, recém personalizado com um adesivo de um panda usando calças e um grip rosa com verde + glitter, aperto o botão embaixo a direita e retomo minha leitura. É o começo da manhã, gosto de ler na cama com a Emilia ainda dormindo perto dos meus pés, seu ronquinho de som ambiente. O sol adentra o quarto por pequenas frestas na cortina. O clima está gostosinho o suficiente para não ser quente, mas quente o bastante para não ser aquele frio que te impede de ter vontade de começar o dia. Deslizo o olhar para o canto da tela “Tempo restante no capítulo: 19 min”, aperto ali, não quero me distrair com isso, aparece então “Tempo restante no ebook: 5h10 min”. A ansiedade vai subindo. Vou bater minha meta de 20 livros do GoodReads? Meu deus, quando que deixei de ser uma pessoa que lê 30 livros ao ano? Estou emburrecendo? Pra onde foi meu tempo? Como que eu fazia isso antes, tinha uma vida social, criava um cachorro, trabalhava com banco de horas transbordando e ainda pintava? A Alexa começa a tocar, hora de levantar e passear com a Emilia.

Coloco minha roupa padrão do nível mínimo de elegância tolerado para se passear no parque com um cão na Itália: calças que eu normalmente usaria para trabalhar num ambiente semi-formal, uma camiseta estruturada e hoje eu ouso: ponho pela primeira vez no ano, uma Birkenstock. Uma verdadeira afronta ao olhar milanês: dedos dos pés a mostra. Emilia está com seus lacinhos verdes e sua guia lilás. Inicio o exercício no meu apple watch, começamos a nossa rota habitual. Hoje não ponho meus fones e me pego sozinha com meus pensamentos. Onde que parei o livro mesmo? Esse livro está muito bom mas não consigo pensar o que li hoje. Devo ter me distraído. Paramos no semáforo: pauso meu relógio. O sinal fica verde: inicio meu relógio. Quase na entrada do parque Emilia já encontra um chihuahua, que está extremamente animado de poder cheirar seu fuço, pauso meu relógio. Dados os devidos cheiros na orelha, no fuço e as corridinhas animadas, adentramos no parque: inicio meu relógio. De repente reparo num cachorro solto que ainda não sei dizer se vai querer arrancar a orelha da Emilia ou só trocar selinhos de nariz. Ele vem correndo numa disparada, meu coração para, o que ele vai fazer? Seu rabinho começa a abanar, fico tranquila, pauso meu relógio para observar a interação. Seu dono logo chega, um senhor italiano nos seus 50 anos, que logo diz pra Emilia “Ma sei bellissima!!!”. Esse homem, no mesmo calor que eu acho que justifica a afronta da birkenstock, está -no parque com terra, grama, sol e cachorros a cada canto- com uma camisa azul, um blaser marrom claro com uma flor vermelha no bolso, uma calça social e um sapato fechado de couro. Gostaria de ressaltar aqui que, neste cenário, o meu look é o incomum que gera olhares. Eles se despedem, inicio meu relógio. Tento manter a Emilia num pace decente para não estragar totalmente as estatísticas do app Fitness no meu celular. Andamos pelo parque, está verdadeiramente um dia lindo! E na volta, ela concorda tanto que decide que é uma péssima ideia sair do parque: ativa os freios das suas patas traseiras e simplesmente se recusa a andar. Preciso levar ela no colo se não daqui a pouco já vai dar meio dia e ainda não fiz nada. Pauso meu relógio, pego meu tijolinho de 8kg e vou andando longe o suficiente para que ela não aviste mais o parque e eu possa retorná-la ao chão. Estou aqui, literalmente fazendo musculação com a Mimi e o relógio nem computar vai. Pronto, parque fora de vista, cachorra no chão, inicio o relógio.

Abro a porta de casa, meu pulso vibra: uma notificação do meu calendário: Almoço em 10 minutos. Almoço esse que eu não fiz, nem Renato, pois hoje é o meu dia de fazer. A barrinha da ansiedade vai subindo. Mas ok! Vou fazer aquele prato que eu jogo tudo na panela e tenho que só ficar olhando, porque aí dá tempo de eu ler enquanto cozinho. Vou só ali no quarto pegar o Kindle. Deixa eu só checar meu celular, porque o pessoal no Brasil começou a acordar, as vezes o Harry mandou mensagem. Abro o celular, entro no Fitness, vejo a estatísticas do nosso passeio, será que meu vO2 melhorou? Nossa dá pra ver certinho a quantidade de vezes que paramos. O exercício ficou rodando por mais de 1hora mas só contei 40 minutos por conta das paradas da Emilia. Rio comigo mesma, amo a diversão que ela traz pra vida. Que que eu vim fazer no celular mesmo? Que que eu vim pegar no quarto? Nossa, a panela, deixa eu ir lá olhar. O almoço fica pronta, comemos, e estou exausta.

Voltando aqui pra voz menos narradora! Esse real foi meu dia ontem. Esqueci de incluir uma aula de yoga no começo da manhã na qual eu também olhava pro relógio freneticamente depois dos 40 minutos porque a coisa estava pesada e eu queria:

A) Saber se estava valendo de algo essa aula: meus batimentos estão altos? quantas calorias foram?

B) Saber por quanto mais tempo eu preciso aguentar essa posição do cachorro que olha pra baixo aqui porque já não sinto mais meus braços.

Queria trazer hoje essa reflexão aqui, que me vejo direto tendo inclusive, do quanto eu estou fazendo as coisas porque eu quero fazer e aproveitá-las ou estou fazendo para bater algum número que ninguém nunca vai ver a não ser eu e a Apple, eu e a Amazon, sabe? Eu sou uma fanática por estatísticas e dados (não me confunda com uma pessoa que enteeende de estatística, OI FABI). Eu amo olhar pra minha vida em números e perceber que por exemplo:

  • desde que nos mudados pra cá, meus batimentos cardíacos em repouso caíram mais de 10 pontos. Um ótimo sinal de saúde.

  • desde que nos mudados pra cá, eu naturalmente, só por andar mais, faço meia hora a mais de exercício por dia ou ando em média 4km a mais.

Quão legal é poder usar essas ferramentas pra verem refletidas as decisões que eu tomei pra minha vida?

Mas aí tem o outro lado: eu nunca soube quantas páginas eu leio por minuto quando só lia livros de papel. Nem me sentia compelida a bater minha própria média sei lá pra que. A gente realmente deveria estar ligando pra isso? Meu professor de filosofia no 3o colegial dizia que ler era importante pro nosso cérebro, para aumentar nosso tempo de foco, coisa que as mídias atuais fizeram o favor de destruir. Não era pra isso?

Passear com o cachorro não era pra deixar o cachorro felizão, pra você acabar andando mais por consequência, trocar amenidades com estranhos e ganhar uns sorrisos ao conhecer outros cães? Eu podia jurar que era pra isso.

Eu escrevo esses textos toda semana, noiada com o tempo de leitura que eles vão dar e das pessoas não quererem ler um texto de 6 minutos de leitura, juro.

Eu hein. Agora deixa eu ir para não ficar mais longo isso aqui.

Até quinta que vem!


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