E o contexto? Cadê ele?
Ilustração por Ana Machado (a mesma que vos fala)
Uma das primeiras coisas que lembro de aprender, no meu primeiro estágio muitos anos atrás, eu uso até hoje na minha vida.
É o seguinte: nunca olhar uma informação solta ou só ela por ela mesmo.
Explico: se alguém chegar para você e falar que ontem o aplicativo Y (ia usar a letra X, mas aí já sabemos a confusão que iria causar) ganhou 100 usuários novos, você sabe dizer se isso é bom ou ruim? Sei lá, 100 usuários pode parecer muita gente ou um declínio total.
É preciso olhar a tendência até chegar no dia de hoje.
É preciso comparar com dados históricos. Como estava esse número 1 ano atrás? No verão passado? É alguma data comemorativa que impacta?
É preciso saber de onde vieram esses usuários, foi orgânico? Foi pago? Se foi pago, foi caro ou um custo que faz sentido?
E, o que eu acho mais relevante e tento exercitar o olhar pra tudo: em que contexto isso aconteceu? Porque as vezes ele podia sim ter números muitos mais altos, mas algo ocorreu que mudou isso. Aí 100 usuários novos pode ser o começo de uma nova tendência de alta, certo? Ou ainda, esse produto está sendo lançado numa região em que o contexto para uso dele é outro.
“Nossa, Ana, que papo chato, achei que estava no Substack, não no LinkedIn.”.
Meu ponto é que é tão fácil olhar para uma coisa e ver ela só pelo que ela aparenta ser. Desde uma foto no Instagram, até o sucesso ou (aparente) insucesso de alguém, uma coisa chata que acontece na sua vida.
Olhar o contexto, a história até ali é fundamental para interpretação correta dos fatos.
Fazer isso pode deixar a coisa mais leve de se carregar, pode te ajudar a se cobrar menos, pode trazer também a devida seriedade para algo que não tinha ou até mesmo mágica.
Alguns exemplos:
A pessoa que viralizou “do nada” e agora é muito famosa com milhões de seguidores
Essa pessoa para mim era a Lele Burnier, pra quem não conhece, ela faz vídeos de Get Ready With Me no TikTok. Ela era uma pessoa que eu tinha a sensação que um dia surgiu no meu algoritmo, e no dia seguinte já era uma sensação. (3,2M só no TT).
Eis que se você gastar uns minutos procurando ela, você descobre um canal no YouTube com vídeos de 7 anos atrás. Ou seja, já tem, pelo menos, 7 anos que ela vem construindo algo com conteúdo online e aí agora, ela achou um formato que funcionou e ela viralizou. Não foi "do nada".
Tudo está dando errado e tudo vai dar errado
Meu lindo e maravilhoso marido é exatamente assim: uma coisa “ruim” acontece, e ele já invalida tudo de bom que já aconteceu, e amaldiçoa todo o resto que virá a acontecer. Pra mim, que estou de fora, é até engraçado de assistir quando ele entra nesse ciclo, porque são coisas mínimas que desencadeiam, vide esse final de semana.
Ele saiu pra correr na rua, derrubou o cartão do metrô e não viu. Quando fomos sair mais tarde ele não achava. Esse único fato pra ele - lembrando, perder um cartão de metrô- era indicativo de que ele falhou na vida, que nada mais daria certo nunca mais e esse era o jeito do universo avisar.
Nessas horas, sempre faço um recap de tudo de legal e incrível que já aconteceu e do que está por acontecer para poder lembrá-lo do contexto e não só do fato isolado.
*preciso ser justa e dizer que tenho exatamente o mesmo padrão de comportamento quando, por exemplo, vou ao médico, e qualquer coisa remotamente diferente aparece num exame. A gente se complementa muito, devo dizer.
Demissões / Fins de Ciclo
Só porque algo acabou agora então isso significa que tudo que você fez até hoje foi invalidado? Não existe mais? Só porque acabou então ter tido aquilo alguma vez deixa de ser uma conquista?
Um amigo querido passou por um layoff e no seu post contando ele escreveu assim:
“Até porque, passado o susto, é preciso reconhecer que não somos um momento só da nossa carreira. Somos tudo o que construímos para chegar até aqui.
[…] (cita suas conquistas corporativas)
Tudo isso sendo um cara gay vindo da zona leste de São Paulo. Reconheci desde muito cedo que, apesar das minhas habilidades, ser quem eu sou me coloca na obrigação de me esforçar para me destacar. E assim eu faço há 31 anos, e vou continuar fazendo nas minhas próximas posições."
Sério, 👏🏻 👏🏻 👏🏻 👏🏻 👏🏻
Não dá para olhar para os acontecimentos como fatos isolados.
Olhar a referência, o contexto, como chegamos até esse ponto para poder ter um análise da situação de forma mais holística.
No livro A voz na sua cabeça, Ethan Kross fala sobre o quanto é importante olhar para as situações com distanciamento:
Podemos pensar na mente como uma lente, e na nossa voz interna como um botão de zoom. No sentido mais simples, o falatório é o que acontece quando damos zoom e fechamos o foco em algo, inflamando nossas emoções até excluir todas as formas alternativas de pensar sobre o assunto que podem nos acalmar. Em outras palavras, nós perdemos a perspectiva.
Essa visão radicalmente reduzida da situação ressalta a adversidade e dá voz ao lado negativo de nossa voz interna, dando força à ruminação e a seus companheiros: estresse, ansiedade e depressão.
Ah, e sobre o cartão de metrô do Renato…
A gente foi fazer um novo, no mesmo dia. Pedi para ele esperar um pouco, pois a gente precisava ir numa exposição antes, e quis também parar pra pegar algo para comer. Eis que, chegamos no balcão para fazer uma carteirinha nova:
- Oi, o que você precisa?
- Perdi meu cartão do metrô, tenho que fazer um novo.
-Só um momento… Qual seu nome?
-Renato.
-E sobrenome?
-(Sobrenome de Renato)
-Ah, tá aqui seu cartão que você perdeu! Um ragazzo deixou aqui não faz nem 20 minutos. Achei que era impossível você passar aqui, mas por alguma razão resolvi guardar.
Vou listar aqui a quantidade de loucuras nesse acontecimento:
Renato perdeu esse cartão a 1,9km de distância da nossa casa.
O balcão do metrô que a gente foi não era nem perto do lugar que ele deixou cair, nem perto da nossa casa. Era num terceiro local perto da exposição que fomos, este 2km de distância do lugar que ele perdeu.
Renato queria ter ido nesse balcão horas antes, mas eu pedi pra irmos na exposição pois era ingresso com hora marcada e estava esgotada. (Ele perdeu por volta das 9h, percebeu as 14h e a gente só foi lá as 18h15)
Ou seja, esse ser iluminado que encontrou:
deixou num lugar que não tinha como ele adivinhar que a gente iria passar
num horário que milagrosamente foi perto do que a gente foi, se tivéssemos ido mais cedo nunca teria dado certo.
achou e se deu ao trabalho de devolver né?
Nessa situação específica acho que vale olhar como um fato isolado do universo sendo muito incrível mesmo.
Até quinta que vem!