Sozinha em Rishikesh aos 19 anos em busca de George Harrison

Eu estava em Paris e enquanto absorvia a imensidão do “estar em Paris”: quarteirões que se encaixam com perfeição, o lindo céu azul, a Champs-Élysées com uma ponta tendo o arco do Triunfo e o outro o Jardin des Tuileries, os ladrilhos lindos nas estações do metrô, eu pensava: será que o Hemingway já pisou exatamente onde eu estou pisando? Será que ele olhou para essas mesmas coisas enquanto conversava com seus demônios internos, rascunhava mentalmente seu próximo livro ou enquanto fazia coisas mundanas que até os autores atormentados fazem, tipo tomar um café e comer um croissant? Ou andar por Milão e saber que o Da Vinci andou pelos mesmos lugares, fez uns freelas (casuais os freelas do homem, tipo pintar A Última Ceia na parede de um convento), talvez tenha até chorado por um coração partido, nos mesmos lugares que eu piso agora. Eu real sou dessas que fica arrepiada pensando nessas coisas.

Quando eu tinha 19 anos eu fui pra Índia sozinha. Depois de ouvir Beatles a vida inteira e depois de também ler a biografia do Steve Jobs que descreve a importância da sua passagem naquelas terras, eu queria saber o que tinha de tão diferente ali pra inspirar gente tão importante. Pra fazer George Harrison ir tantas vezes pra lá, pra ter sido o lugar onde os Beatles escreveram a maior parte das músicas do White Album, meu álbum preferido deles. Pra quem não sabe, eles foram pra Rishikesh, uma cidadezinha que fica no pé do Himalaia, num retiro espiritual num ashram, que hoje está abandonado. Peregrinação em Liverpool? Não, claro que não, eu precisava saber o que tinha lá na Ásia mesmo.

Lá fui eu, com uma trancinha de cada lado da cabeça, um moletom verde que era todo o aquecimento que eu tinha (acho que a gente esquece, mas faz bastante frio na Índia), acampar na beira do rio Ganghes para no dia seguinte de manhã, pedir para um guia indiano ir desenrolando com os locais até descobrirmos aonde ficava esse ashram, que no caso, estava no meio de uma reserva florestal protegida pelo governo. Convenci mais 3 amigos que fiz por lá a irem comigo. E o que eu senti lá dentro desse lugar é um sentimento difícil de descrever. Me prometi voltar lá em algum momento dessa vida, preciso sentir isso de novo. Existia algo mágico ali, talvez permeado pela minha inocência de 19 anos sozinha do outro lado do planeta? Talvez. O lugar estava como se as pessoas um dia de repente tivessem todas se sentido compelidas a levantarem, saírem andando pra sabe-se lá onde, e nunca mais voltarem. Pratos ainda estavam em mesas, copos empilhados, restos de pertences, era muito curioso. Caso não tenha ficado claro, na época, não era um local aberto a visitação, você só tinha que saber que ele existia mesmo. Tinham mais duas pessoas lá também e era isso. As paredes eram cheias de desenhos enormes e homenagens dos fãs que já passaram por lá. Me senti parte de um segredo muito especial.

Você já teve esse sentimento? De fazer parte de algo maior que você? Talvez num show enquanto sua voz se fundia a de milhares de outras pessoas enquanto vocês cantavam (ou berravam) aquela música que tem um significado diferente na vida de cada pessoa ali. Eu tenho isso toda vez que canto Hey Jude, sempre aos prantos (nem eu sei o motivo), num show do Paul McCartney. É sempre um momento lindo demais.

Escrevo aqui hoje para falar do poder do coletivo. Queria compartilhar com você caso você nunca tenha usado isso pra se sentir mais forte numa situação desafiadora. Pensar no Hemingway em Paris ou no George Harrison em Rishikesh é um jeito de ilustrar, porque são pessoas que você conhece também e a gente consegue compreender o exemplo juntas aqui. Eu sempre que me encontro numa situação que me dá medo, que eu não sei se vou conseguir, penso (não me ache maluca) na humanidade. No quanto de tempo a gente tem enquanto espécie nesse planeta e aonde chegamos, e que com toda certeza, muitas centenas (chutando bem baixo) de pessoas já passaram exatamente por essa situação, e já a superaram. E essas pessoas passaram o conhecimento delas adiante e isso está dentro de mim de alguma forma.

Ano passado, eu fui pra China. Uma viagem que eu estava extremamente animada de fazer mas igualmente apavorada. Por quê? Nossa, eram tantos. Primeiro que todos os apps que a gente usa pra sobreviver nesse lado do mundo não existem, a China bloqueia todos. Não tem Uber, Google (como fazer qualquer coisa sem Google?), iFood, WhatsApp, Instagram, nada. Era muito difícil achar alguém que falasse inglês, ou qualquer tipo de informação em inglês. Eu nunca tinha ido, ia chegar tarde da noite. Eu estava com muito medo e ia sozinha. Mas aí eu lembrei que fui pra Índia, sozinha, com muito menos tecnologia, anos antes e deu tudo certo. E essa pessoinha de 19 anos habitava dentro de mim, e ela ia me ajudar nos meus quase 30.

Quando meu pai morreu e eu não sabia onde achar forças, sabe em quem eu achei forças? Nele próprio, que perdeu o pai dele muito mais novo que eu, aos 17. Se ele conseguiu ter sobrevivido a isso, eu também ia conseguir. Imaginava ele bem novinho, com muito menos rugas do que eu jamais o vi, recebendo a notícia, passando pelo seu luto e decidindo os próximos caminhos da sua vida.

Deu pra entender? Acho que isso explica também o porquê de eu sempre procurar resposta pra qualquer questão na minha vida entrando numa livraria (ou na Amazon), e procurando um livro que fale sobre. A resposta e a coragem está no coletivo e na nossa sabedoria construída. Somos todos seres individuais, introvertidos (oi) ou extrovertidos, com nossas histórias e personalidades, mas a gente precisa lembrar que faz parte de algo maior. A gente pode tirar essa energia de nós mesmos (do passado ou do futuro), do chão que a gente pisa, da nossa ancestralidade, de todos os lugares que nos lembram do coletivo. Isso pode nos salvar as vezes.

A Elizabeth Gilbert fala que as ideias existem por aí no universo e passam pelas pessoas, mas que se elas não as usam, elas vão embora e pingam em outras. Essas ideias passaram por mim hoje e talvez tenha sido pra que cheguem até você. Espero que tenham chegado.

Até quinta que vem!


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