Quentinho no coração de carregar as histórias que carrego
Me peguei pensando no conhecimento, não aquele da faculdade, mas sobre um que eu aprendi a respeito nela. Se eu falo sobre ele, eu consigo me enxergar sentada na sala da república que morei no primeiro ano, com meu notebook da hp, lendo um pdf muito mal feito, quase não legível, do livro que explicava sobre. O conhecimento tácito. Esse parece ter sido o tema dentro de mim na última semana, mas antes a definição:
“O termo tácito tem origem no latim tacitus, que significa “não expresso por palavras”. Dessa forma, o conhecimento tácito é aquele tipo de conhecimento mais difícil de ser formalizado e transmitido às outras pessoas. Ele está relacionado às experiências, à visão de mundo e às práticas de determinado indivíduo”. Fonte
Fiquei pensando no conhecimento que está dentro de mim, dentro de você e dentro de quem vai embora. Algumas histórias vão morrer junto com as últimas pessoas que sabem dela, mesmo. Para e pensa no tanto de coisa que se perde se a gente não senta e ouve o que tem pra nos contar.
Eu faço um curso online, e tinha um professor que corrigia minhas lições. Tudo acontecia somente via texto, nunca nos vimos, nunca ouvi sua voz. Recebi um e-mail, na semana passada, que ele tinha falecido. Eu não sabia que ele estava doente, e estava ali aprendendo as últimas coisas que ele tinha pra trocar. Isso me mexeu de um tanto, tenho pensado nele todo dia. O medo que eu tinha de mandar meus exercícios pra ele e ser "avaliada" e o quanto ele era gentil nos feedbacks até para falar que algo não estava bom. Se eu paro para analisar, eu aprendi com ele muitas outras coisas além da parte técnica, no seu jeito de comunicar, de me tratar, de entender meus pontos, vendo ele responder outras pessoas. Não é bonito isso?
Penso nas pessoas que nem conheci, mas das quais sei tanto e sempre tive sede de saber. Quantas pessoas você sente que conhece só de ouvir as histórias sendo contadas apesar de nunca as ter visto? Sei tanto sobre minha bisavó Alice e nunca nem cheguei perto de tê-la conhecido, mas ela sempre esteve presente por meio da minha mãe, que sempre adorou contar as suas histórias e repetí-las quantas vezes for. O que ela ensinou pra minha mãe em sua infância me marcou da mesma forma. O conhecimento linka a gente, não é maluco?
Penso na Maria, uma senhora que eu ouvi tanto falar desde as primeiras conversas que tive com meu marido. Maria mora em Roma, ficamos os últimos 5 dias visitando a casa dela, ouvindo suas histórias e aprendendo a cozinhar os pratos dela. Só tive a chance de conhecê-la agora, mas parecia que já a conhecia há tempos. Ela está prestes a completar 99 anos, e como eu amei ouvir ela contar inúmeras vezes sobre sua infância na praia, sua mudança pra Roma, como foi ser mandada pra Alemanha durante a guerra. Ela todo dia, sem falha, me apresentava todas as pessoas em todos os (muitos) porta retratos pela sua casa. É tão especial alguém dividir o que é importante com a gente. Quanto não se vive, se testemunha, se muda em um século de vida? Que privilégio gigantesco poder sentar com ela e ouvir ouvir ouvir ouvir.
Um cantinho de Roma que é especial para Maria e que ela é das poucas que pode dizer que viu há 100 anos atrás. Photo by Ana Machado
Uma pessoa que eu testemunho com muita frequência a potência disso é a avó do Renato, que está por aqui, mas não conversa mais tanto por conta de uma doença cruel. O tanto que, mesmo sem tê-la visto no seu auge, eu enxergo dela em cada pessoa que ela cruzou caminhos. Ela tem uma família linda e enorme, e cada um deles tem um pedação dela, no jeito de cuidar um do outro, no jeito de rir, de compartilhar, é lindo de ver como ela vive pulsante em cada um ali. Amo ouvir as histórias dela pegando táxi em NYC, fazendo o impossível para gerir mil coisas ao mesmo tempo e trazendo pôneis gigantes de pelúcia no avião.
Um livro que gosto muito, Fahrenheit 451 do Ray Bradbury, tem esse nome pois é a temperatura na qual o papel queima. Ele aborda um mundo no qual os livros estão sendo exterminados e as pessoas correm pra decorar suas histórias preferidas para que elas não sejam perdidas pra sempre.
Tenho muitos livros que amo e que me marcaram, mas a minha escolha seria, e é, carregar e manter vivas as histórias e conhecimentos que eu tive a honra de receber dessas pessoas que as vezes nem conheci, ou que tive a imensa sorte de poder ouvir seus últimos pensamentos. A humanidade é meio que isso né? Quantas partes de nós, que julgamos ser traços de personalidade exclusivos, na realidade não foram passando pra gente de várias gerações atrás?
E que orgulho gigante dentro de mim quando me reconheço fazendo algo, ou me comportando, como por exemplo, o meu pai, que não está mais aqui. Nossa, dá um quentinho no peito saber que essas coisas nada nem ninguém tira da gente.
(Não sei o que está acontecendo mas parece que todo texto agora eu termino de escrever aos prantos emocionada aqui, me disseram que derrubei algumas lágrimas por aí também no último, perdão, ou não né, tem dias que faz bem dar uma choradinha).
Esse texto é para Tony, Maria, bisavó Alice, Nazaré, minha mãe e meu pai. <3
Até a próxima quinta!