A última sonequinha na rede
Quantas vezes você fez algo sabendo que era a última vez? Não sei se por sorte ou azar (acredito que o veredicto dependa da ocasião), muitas vezes a gente não sabe que é enquanto a gente está fazendo. Aquele último abraço antes de passarem anos sem se encontrar, ou aquele último momento de paz e tranquilidade antes de um longo período de caos, a última soneca na rede com seu cachorro alma gêmea antes dele ficar doente e ir embora, a última conversa com um ente querido antes dele ir embora subitamente.
Foram pouquíssimas as vezes que eu soube que algo era a última vez. Tenho uma última vez aqui que estou guardando por mais de um mês. Um último recado que uma pessoa que se foi deixou pra mim e eu não abri ainda. Não era uma pessoa próxima, mas era uma pessoa que eu tinha contato relativamente frequente. Eu preciso abrir esse recado porque ele faz parte de um curso que eu preciso dar continuidade, mas nossa como tenho arranjado todo jeito possível de evitar abrir. Porque depois desse, não vai ter mais. Nunca mais. Nenhuma vez.
Semi-perdida num labirinto na Áustria, mas achei que combinava com a vibe do texto de hoje. Photo by Ana Machado
No livro A Ridícula Ideia de Nunca Mais Te Ver, a autora Rosa Montero fala sobre como é difícil para o nosso cérebro conceber dois conceitos: sempre e nunca. Eu não tinha pensado sobre isso quando li, mas depois jamais esqueci. É muito difícil mesmo aceitar que certas coisas foram mesmo, não tem jeito na terra, promessa ou dinheiro que torne algo possível. Pra sempre. Nunca mais. E como faz?
Tenho lidado com esse dilema há 3 anos, desde que tive que seriamente encará-lo pela primeira vez. A resposta curta é: não faz. Talvez essa seja a maturidade que tanto ouvimos falar? No meu caso, eu racionalizo e romantizo.
Racionalizo: “tá, toda vez pode ser a última vez, como eu encerro essa interação com paz no coração caso seja a última?”. Outro livro, que recomendo altamente e fortemente a leitura, é A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver, a autora, uma médica especialista em cuidados paliativos, já viu muita gente deixar esse mundo e ganhou muita sabedoria sobre arrependimentos, desejos finais, pensamentos desse momento. A conclusão é: “morte” é um grande tabu e ninguém quer falar sobre. Mas todos vamos de fato morrer, não tem motivo para não falar sobre. As pessoas que pensam a respeito e discutem acabam processando melhor. Você se dar conta que vai acontecer te dá a chance de pensar sobre o que você quer perguntar pra quem ama e sobre o que você quer que saibam. E isso é uma sorte tão grande e que não nos damos conta.
Romantizo: guardar cada memória numa caixinha especial na cabeça ou pasta no computador, e gastar elas aos poucos. Escrever sobre, falar sobre no meu tempo. Lembrar com carinho, florear a história, antecipar o reencontro. Pensar no quão especial foi ter vivido aquilo tudo. E enquanto estou vivendo: gravo sempre um pedacinho, poder ouvir as vozes das pessoas e cachorros quando elas não estão mais aqui é um quentinho no coração indescritível.
E um adendo: não é porque fomos na rota melancólica aqui hoje que não existam últimas vezes boas. Gente, quando você sai de um emprego e pensa "é a última vez que vou ter que aguentar isso aqui", quem nunca? Ou quando você sabe que as coisas estão melhorando e pode apreciar que provavelmente é a última vez que está passando por alguma situação perrengue. Essas últimas vezes tem um glitterzinho especial né.
Mas é isso, são raras as ocasiões nas quais a vida não arranca o band-aid com toda a força enquanto você grita e chora ao mesmo tempo, então acho valido me antecipar quando sei, pra criar um momento especial, respirar fundo e passar um óleo no band-aid pra doer menos sei lá, vai que.
Até quinta que vem!